Inquérito SP_EF_057

SPEAKER 0: : sobre Shakespeare. As tragédias de Shakespeare em relação ao teatro grego e ao teatro moderno. Na tragédia grega, o herói, isto é, a pessoa humana, em geral é ou torna-se culpado de grandes crimes, transformando-se assim em vítima de forças superiores a ele. Os crimes, ele os comete levados por paixões violentas e, em consequência destes, vira um fantoche, uma vela ao sabor dos ventos. O destino com dê maiúsculo é quem decide de sua sorte. Os deuses a quem ofendeu são os agentes do que lhe acontece. Ele próprio não tem capacidade de evolução, de progresso, de conhecimento de si mesmo. É dipo é autor de crimes de que não tem consciência E se, se chama sobre si a maldição de um povo, não tem elementos para uma renovação interior. E E no impacto com a verdade, só pode se tornar mais outra vítima do destino. Para vários outros heróis trágicos do teatro grego, a vingança contra o mal infringido por outrem é o único fito. O desejo de vingança leva Orestes ao matricídio. Mas não é a sua própria consciência que depois o persegue, e sim as fúrias. O mesmo acontece com Medéia, com Criternestra e assim por diante. É Electra, então, é simplesmente um repositório de ódio e de um desejo implacável de vingança. O que essa vingança representa como consequência psicológica, como fator de destruição do mais íntimo do ser humano, não é estudado nem descrito. A vingança leva simplesmente ao crime e este, de acordo com a ética dos gregos, traz o seu castigo imposto pelos deuses, isto é, por forças superiores ao próprio indivíduo. Também não era de se esperar que há mais de dois mil anos atrás o dramaturgo fosse capaz de uma pesquisa psicológica mais complexa. A grandeza de Shakespeare reside não só no fato de que o seu personagem trágico é um ser consciente, mas também na verdade e profundidade psicológica de suas criações. Seu herói é um indivíduo que atingiu a maturidade, que pode escolher entre o certo e o errado, e que quando erra, compreende que as consequências de seu ato criminoso ele próprio as provocou, ele próprio ocasionou. Em outras palavras, ele é um ser num processo de evolução. Mas para chegar a isso, Shakespeare também sofreu uma evolução. As suas primeiras tragédias são, como todas as tragédias do fim da Idade Média, senequianas. Isto é, na linha de Seneca. Em que o tema básico é o velho tema da vingança. Nestas, a ação se desenvolve dentro das várias tentativas, a princípio infrutíferas, do herói levado a se vingar de algum crime terrível que o vilão cometeu contra ele. E essa vingança finalmente se realiza quando, graças a algum estratagema inteligente, ele atinge o seu fito. Mas até atingi-lo, o vilão caçoa dele cada vez que fracassa e ele quase fica louco. Aí então, geralmente, um espírito vem dar-lhe novas forças e novo ímpeto. A sua fraqueza inicial e a sua loucura servem apenas para adiar a vingança e aumentar o suspense. Ele sempre se depara com obstáculos incríveis. O vilão em geral é manhoso e forte, e tenta criar ciladas contra o vingador, assim como este tenta fazer o primeiro cair nas suas. E a vingança final é geralmente violenta, sangrenta, horripilante. Não só a alma do vilão precisa ir para o inferno, como também a alma do vingador. E normalmente as peças terminam ou com o assassinato ou o suicídio do vingador. A primeira tragédia de Shakespeare, Titus Andronicus, segue mais ou menos essa linha. É sem dúvida uma peça fraca, mas já superior ao que se escrevia na época como a tragédia espanhola de () que, não explorando o problema do sofrimento humano, pode ser considerada mais um melodrama do que propriamente uma tragédia. Titus é como herói diferente, pois nele assistimos ao sofrimento de um grande homem, de um indivíduo visceralmente bom, cujas próprias virtudes são a fonte de seus pecados e que na sua () (risos) e que na Depois de Titus, vem Ricardo terceiro, que muito provavelmente, quando escrita, já fazia parte, na cabeça do autor, de um plano de quatro peças históricas, sendo Ricardo a última na sequência cronológica. A escolha de Ricardo como herói também se coaduna com o estilo e esquema senequiano pois que os () vai mal, vai mal (risos) (risos) Deixa eu recomeçar este parágrafo. Depois de Titus, vem Ricardo terceiro, que muito provavelmente, quando escrita, já fazia parte, na cabeça do autor, de um plano de quatro peças históricas, sendo Ricardo a última na sequência cronológica A escolha de Ricardo como herói também se coaduna com o estilo e esquema senequiano, pois para os Elizabethanos, Ricardo era a figura do vilão completo, já tendo sido anteriormente explorada por outros autores. A verdade sobre Ricardo é provavelmente bem outra, mas naquela época, devido a razões políticas, ele tinha ido para os anais como arque-criminoso, o flagelo de Deus para a Inglaterra. E Shakespeare segue a opinião corrente, fazendo de Ricardo a total encarnação do mal. Diga-se de passagem que, para o ator, é um papel difícil e ingrato, porque falso. Mas assim mesmo, Shakespeare consegue, de certa forma, fugir da fórmula senequiana do drama de vingança. Isto é visível no remorso que se apossa de Ricardo na véspera da batalha final e a coragem com que ele vai enfrentar a morte () Já também nesta peça, Shakespeare aprende a enriquecer a trama senequiana com elementos simbólicos. Ricardo é, em linhas gerais, a figura da Inglaterra levada para o caminho do mal, necessitando de uma purgação que fica simbolizada na figura de Henrique sétimo, o destruidor de Ricardo. Estas duas primeiras tragédias, que são dramas de danação eterna e ocasionada pelo mal, não encontram sequência na tragédia seguinte, Romeo e Julieta. Nesta, Shakespeare já dá um cunho totalmente pessoal na obra. Usando um material de moralidade senequiana, típico da época, em que o amor ilegal leva a danação, Shakespeare desenvolveu uma trama em que o homem não é destruído pelo mal. O destino que leva Romeu e Julieta à morte não é uma força arbitrária, caprichosa, como no poema escrito trinta anos antes sobre o mesmo tema por Arthur Brooke. Shakespeare usa a história dos amantes para explicar uma lei cósmica, sábia e benevolente () Romeu e Julieta não são meros fantoches nas mãos de uma divindade cega. A sua morte é um sacrifício necessário para restaurar a paz no meio social. que é um bem maior do que a felicidade individual. E os amantes, apesar de morrerem, conquistam uma vitória, forçando a reconciliação de suas famílias. A culpa não acarreta uma condenação, pois não há culpa. Romeu e Julieta são duas crianças nascidas num mundo cheio de erros antigos, que eles não criaram. A luta entre os () e os Capuletos, com todas as suas ramificações, corrompendo a ordem social, é explicada logo de início, antes da apresentação do herói e da heroína. E os dois procuram encontrar a felicidade num mundo cheio de erros, tentando pôr termo ao mal com o amor, vendo no seu casamento o fim da luta entre os pais. Mas eles não têm força suficiente para combater um mal tão arraigado e, em consequência, sofrem e morrem. Em linhas gerais, esta é a trajetória de todo ser humano, que a certa altura tem que se deparar com o mal, tem que aprender o que este significa, assim como aprender o que significa ser um homem. Romeu, que é a princípio um menino romântico e afoito, cresce, à medida que a tragédia se desenvolve, para uma maturidade completa na aceitação da morte. Isto está claro na sua resposta a Páris, dentro do túmulo da família, quando este, desafiando-o para o duelo, diz, tens que morrer e Romeu responde tenho de fato Foi para isto que vim aqui. Neste crescimento interior de seu herói... e nessa concepção da conscientização da força do destino... e da necessidade do sacrifício próprio para um bem maior... está a grandeza desta tragédia. Depois de Romeu e Julieta vem duas tragédias da história inglesa. King Jonh e Ricardo As duas são uma exposição de princípios éticos e políticos em que Shakespeare procura uma resposta para as duas grandes questões da época. Quem é um rei perfeito e quais os limites de seu poder? Nas duas, ele usa pela primeira vez o paralelismo de personagens, estudo psicológico que desenvolverá em suas obras-primas. Em King John, o contraponto deste é o bastardo. Em Ricardo segundo, é Henry Bolingbroke. que é o espelho oposto das virtudes, dos defeitos, da força e da fraqueza do rei. E enquanto John cai como indivíduo, o bastardo cresce. Enquanto Ricardo cai, Hendrick cresce () Já nestas duas, além do lado político, Shakespeare desenvolve o lado pessoal da tragédia. E o pessoal entra em choque com o político. A vitória política traz a culpa moral. E a vitória moral traz a queda ou capitulação política. Existe, além disso, uma tentativa de regeneração do herói trágico em ambas as peças, mas enquanto que em King John isto é feito através da vitória dos () princípios políticos que o herói defende, em Ricardo segundo a regeneração não se relaciona com a questão política () Shakespeare conseguiu assim criar uma tragédia humana dentro de uma peça histórica, e em Ricardo segundo a tragédia pessoal e a história estão perfeitamente entrelaçadas. Na peça seguinte, Júlio César, Shakespeare faz uma experiência sui generis. O uso de duas situações trágicas numa mesma peça. As tragédias, tanto de César quanto de Brutus, são de ordem ética e de ordem política. E ambas as tragédias pertencem a um tema mais vasto. A tragédia de Roma, a qual tanto César quanto Brutus contribuem () Aqui a questão da escolha moral entre o bem e o mal levam o herói por causa de seus defeitos a fazer a escolha errada mas também a enxergar o erro da escolha nas consequências que esta traz, e antes de morrer, se arrepender. Verifica-se esta evolução em sua totalidade em Brutus, e até certo ponto em César. Existem dois lados na tragédia de Brutus, um diretamente relacionado ao outro. A sua incapacidade de levar a conspiração à vitória provém diretamente de seu outro fracasso, a incapacidade de viver de acordo com seus ideais éticos. Já chamaram Brutus de filósofo idealista, sem os requisitos necessários de um líder de sucesso, incapaz de enfrentar as realidades cruas da política () Essa incapacidade é a causa da sua própria tragédia () Ele tenta fazer uma separação entre a moral privada e a moral pública, mas não consegue. Todos os seus erros táticos, a recusa de fazer o juramento, a recusa de () assassinar Marco Antônio, a sua insistência para que Marco Antônio fale no enterro de César, todos são resultados da sua incapacidade de aceitar as consequências lógicas de seu ato imoral () E ele insiste em se colocar num prisma de moralidade que ele próprio já corrompeu. Cassius é também uma figura trágica, pois ele enxerga que de vez em que um caminho imoral foi tomado, querer utilizar os princípios da antiga moralidade só pode levar ao desastre, e ao mesmo tempo permite que Brutus o faça. Como dramaturgo histórico, Shakespeare tem absoluta consciência do sentido político do seu tema. Ele enxerga de um lado o caos civil, que é consequência de um grande líder querer destruir velhas instituições, a república, procurando pela demagogia chegar a ser coroado rei, coisa a que não tem direito. E o seu herói principal, Brutus, para atingir um bem público, comete um crime pessoal, assassina seu amigo. Este crime de Brutus vai contra todos os princípios éticos mais elementares, isto é, contra a () dos laços de amizade. Aqui temos um choque dramático entre um ideal político abstrato e a bondade humana comum que é violada. Brutus tem plena consciência dessa violação e pensa estar preparado para enfrentá-la. E é essa confrontação, essa luta de consciência, esse amadurecimento humano que é a verdadeira tragédia de Brutus. Estamos, pois, presenciando no desenvolvimento da obra Shakespeareana a procura do tema essencial de um ser humano que quer atingir a maturidade. a sua confrontação consigo próprio. Em Hamlet, então, ela nos é dada com uma profundidade nunca atingida antes e talvez jamais repetida depois em toda a literatura ocidental. A tragédia de Hamlet, baseada numa história corrente da época chamada Ur-Hamlet, era, como a história pré-Shakespeare de Romeu e Julieta, uma tragédia senequiana de vingança negra e de mal punido. Mas Shakespeare novamente foge ao molde e transforma a história no crescimento e amadurecimento de um indivíduo. Hamlet, como Romeu, nasce para um mundo já corrupto e cheio de males antigos. E ele se defronta com uma degenerescência mais insidiosa e penetrante do que na tragédia de Verona. Essa degenerescência ele precisa combater fora e dentro de si próprio. Mas a sua tarefa se torna dificílima, pois não encontra apoio algum. A família, os amigos, a mulher amada, todos parecem se juntar para se voltar contra ele. Para atingir a sua meta, ele faz várias tentativas que fracassam, pois ele precisa atingir a compreensão verdadeira da sua função como indivíduo na ordem universal para poder vencer. E é só quando atinge essa compreensão que ele consegue realizar o que pretende, apesar das suas falhas humanas. Claro tem que morrer, como todos nós temos. Mas como rolou, a sua morte é uma vitória. É o que torna possível a eficácia dos remédios para os males que o cercam. Toda a primeira parte é de vacilação e de adiamentos, como ele próprio diz. Não sei porque vivo dizendo, isto tem que ser feito. Considerando que tenho razões, vontade e forças para fazê-lo. Mas é que ele precisa aprender que a sua força e as suas razões não lhe servirão de nada enquanto os problemas morais que giram em torno de sua tarefa não forem resolvidos. A vacilação de Hamlet não é um sintoma de fraqueza de caráter, mas a afirmação simbólica da incapacidade do homem de resolver os seus problemas sem antes conhecer a si próprio. Quando ele consegue agir acima do nível das paixões, das angústias, e sem se deixar atingir pelos reveses do destino, então a sua missão será cumprida. Shakespeare indica isso várias vezes, como por exemplo na descrição do caráter de Horácio. Tem sido um, que tendo sofrido tudo, não sofre nada. Um homem que agradece igualmente os golpes e as dádivas do destino. E abençoado é o que possui tal sabedoria. que não é mais uma flauta que o destino toca, seu (). Dê-me esse homem que não é escravo das paixões. E a essa grandeza de tema se junta uma riqueza psicológica dos outros personagens, como por exemplo da figura de Cláudio, que é, apesar de criminoso, um homem cheio de qualidades, um rei eficiente, um homem capaz de grande cordialidade, afabilidade, e cheio de interesse pelo futuro e bem-estar do enteado, como quando ele diz no primeiro ato, Que o mundo saiba que a pessoa mais chegada ao trono e o objeto de um amor tão grande quanto o pai mais amoroso possa ter pelo próprio filho. Em termos dramáticos, esta composição de Claudio torna o problema de Hamlet ainda mais complexo. Por quê? Para todos os efeitos, ele odeia e quer eliminar alguém que o quer bem. E o seu conflito interior cresce, pois logicamente ele se sente levado pelo amor Pelo pai verdadeiro. Deixa eu voltar aqui. E o seu conflito interior cresce, pois logicamente ele se sente levado pelo amor, pelo pai verdadeiro, morto pelo padastro. A destruir este. Essa luta de consciência que faz de Hamlet a encarnação da angústia humana, torna-se explícita no papel paradoxal do fantasma do pai, que exige que ele vingue a sua morte. E ao mesmo tempo manda que, qualquer que seja a forma que uses para a vingança, não manches o teu espírito. nem a tua alma. Esse conflito, aparentemente insolúvel, o leva a tal profundidade de angústia que, a certo momento, a única solução parece ser o suicídio, como esclarece o monólogo Ser ou Não Ser. Além disso, à medida que se desenvolve a ação da peça, ele verifica que está cada vez mais só, que não conta com ninguém. Ele sabe que a própria mulher amada vai ser usada na trama contra ele. E, no terceiro ato, as suas invectivas contra ela. Vá para um convento! Por que serias tu procreadora de pecadores? Eu próprio sou relativamente honesto, e no entanto posso me acusar de tais coisas que seria melhor que minha mãe nunca tivesse me dado à luz. São a expressão do desespero mais negro do indivíduo, perdido em total solidão, e que não enxerga mais em toda a humanidade nenhum laivo de esperança. O primeiro passo positivo no seu amadurecimento é dado depois de ter morto Polonius. num acesso descontrolado de raiva, causada pela frustração de se sentir incapaz de resolver o problema todo, simplesmente com o assassinato de Cláudio () Assassinato que ele intuitivamente reconhece não ser a verdadeira solução. Esse crime é o primeiro impacto emocional que o defronta com a própria morte. Aceitando o fato de que precisa morrer, pois quem mata morre. Ele começa a ter uma visão mais objetiva da sua situação humana e do relativo das paixões. Podemos sentir isso na sua fala no cemitério. Orgulhoso César, morto e transformado em barro que pode servir para tapar uma fresta por onde passe o vento. E também quando ele di impetuosamente e abençoada impetuosidade, pois as loucuras que cometemos devem servir de lição quando vemos frustradas as nossas tramas mais negras. Devem nos ensinar que existe um plano divino que nos conduz a uma meta, por mas mais, mais que queiramos frustrá-lo. E mais adiante, the readiness is all. Tudo é estar preparado. E aqui encontramos a solução para o paradoxo das ordens do fantasma. Quando Hamlet entra no duelo com Laertes, desaparece a inquietação que foi o seu estado de espírito durante todo o princípio da peça. E quando fala a Laertes, é para lhe pedir perdão, com a compreensão, ou melhor, a () compaixão de um ser humano integrado na ordem cósmica da interdependência e irmandade de todos os seres. Nesta peça Shakespeare atinge, pois, uma universalidade de tragédia humana até então não alcançada por nenhum escritor. Se o crescimento de Hamlet vem de viver um conflito de consciência provocado por um mal real, mas passivo, impregnado há muito no ambiente em que ele vive, o crescimento de Othello, por outro lado, é mais sutil, porque o mal de que se vê cercado é uma ilusão, é fruto da sua própria fraqueza. fraqueza que o leva a acreditar nesse mal. Nesta peça, Shakespeare desenvolve uma maravilhosa precisão de temática quando simboliza a força do mal em termos de um mal específico. O ciúme, a antítese do amor, a perversão do amor através do medo. E Desdémona simboliza o amor mais completo. O amor do espírito e da compreensão, que passa todas as barreiras, mesmo as do preconceito social. Na terceira cena do primeiro ato, ela diz... É na mente de Otelo que vejo a sua imagem e a sua grandeza. E foi ao seu valor que entreguei a minha alma. Na necessidade da destruição desse amor total é que o conflito ilusório se trama. Na perfeição de seu amor, Desdêmona representa o amor de um Cristo pelo ser humano. Ela é a encarnação do auto-sacrifício e a transformação do homem em ser divino. Otelo, por outro lado, é uma presa fácil das intrigas, algumas bastante primárias, como a prova do lenço, enredadas por Iago. Porque ele próprio ainda não se conhece. Porque é a primeira vez na vida que é levado à luta contra as próprias paixões. Ele, o general já treinado na luta exterior, física. É um inexperiente total nas batalhas da alma () Iago, então, é o símbolo que se tornou clássico do erro. Ele representa a desintegração do indivíduo e da sociedade. É o oportunismo, o materialismo e o egoísmo racionalizado. Exemplo a sua fala, Rodrigo, na terceira cena do primeiro ato. Virtude é uma figa () É em nós mesmos que somos assim ou assado () Nós temos o raciocínio para esfriar os nossos ímpetos raivosos, as nossas fomes carnais, a nossa luxúria. Justamente os pontos fracos. O lado inexperiente e negativo de Otelo, que o seu faro de raposa descobre e usa. Mas Iago, apesar de brilhante, é incapaz de enxergar a qualidade da relação entre Otelo e Desdêmona. Para ele, o amor entre o general negro e a veneziana aristocrata só pode ser, como diz na terceira cena, um elo frágil, lento e um bárbaro errante, uma veneziana super sofisticada. Como para Iago o amor só pode ser concupiscência, tanto Otelo quanto Desdêmona têm que estar nas garras da paixão carnal. O seu raciocínio frio e limitado ao interesse imediato não consegue ver nada mais alto. E esta falta de visão é que leva, o leva, à própria destruição. Nele, para fins dramáticos, Shakespeare pinta o lado negativo, destrutivo () do indivíduo. O raciocínio despido de sensibilidade. O mesmo raciocínio que, podendo tomar a trilha para o alto, abre as portas para as motivações mais baixas e os erros mais crassos. Otelo, que é intrinsecamente honesto, valoroso e generoso, leva algum tempo para se deixar levar. Mas, afinal, cede. E sofre toda a angústia da negação de tudo que ele possui de melhor. O amor de Desdêmona, e o seu amor por Desdêmona. E só depois do ato criminoso é que o leva o conflito, é que enxerga o seu erro, é que compreende, é que cresce. E depois de Otelo, chegamos ao máximo da concepção matura do indivíduo como responsável, não só pelos seus erros e pelas consequências que estes acarretam, como também pelo seu destino. () No Rei Lear, Shakespeare afirma de maneira clara e concludente a possibilidade humana de regeneração, de conhecimento de si, de reconhecimento total de suas fraquezas e erros, e da visão do que pode e deve ser um homem, com agá maiúsculo, coisa que não desenvolveu integralmente em Otelo. E a escolha que fez de um velho para tal herói é certa. Porque o que ele quer demonstrar é que o renascimento espiritual de alguém não depende da idade. Ele nos faz ver que os oitenta anos de Lear, de orgulho e de falsa imagem de si próprio, foram apenas uma preparação para a vida, e não a verdadeira vida. Os dois primeiros atos mostram a falta total de conhecimento que Lear tem de si mesmo. e o apresentam deliberadamente, não como uma vítima de males externos, mas como o próprio instigador das forças que provocam a tragédia. No terceiro ato, ele ainda se considera um homem contra quem pecaram mais do que ele pecou. Mas foi ele próprio que provocou os conflitos à sua volta. Nele estão as sementes que germinam os acontecimentos que se seguem. Como pai, ele provoca nas filhas reações diferentes que são um reflexo das facetas contraditórias da sua própria personalidade. Se Goneril e Regan são intrigantes, mesquinhas, egoístas e mesmo mais, ele o sabe e diz. Mas tu és carne de minha carne e sangue do meu sangue, minha filha. Ou melhor, uma doença que está no meu corpo que tenho que reconhecer como minha. e pouco depois chega a reconhecer a sua responsabilidade em relação à maldade das filhas. Mereço o castigo, pois foi fruto do meu próprio eu. Como rei, os seus impulsos voluntariosos liberam forças de anarquia social, forças ligadas às que dividiram a família e que contêm em si o germem da extinção total () Arquiteturalmente, a peça passa-se em três planos, que se entrelaçam e () são interdependentes. o social, o do estado político, o familiar, e o do mundo físico circundante. Os erros de Lear se refletem em todos os três, abalando toda a escala universal. Sim, Otelo é um elemento estranho que vem abalar os alicerces fracos do herói, provando que ele ainda não estava pronto para um conflito interior, e em Lear é o próprio herói que semeia a seara dos males que vai colher. E os males são maiores, mais cruz, mais brutais, espalhados simbolicamente, não numa única figura demoníaca, como em Iago, mas em várias. As filhas, Goneril e Regan, e mais Edmund, Cornwall e Oswald. O erro básico de Lear é a falta de conhecimento próprio, além da irresponsabilidade e do egoísmo. No início da peça, quando divide o reino entre as filhas, não o faz por motivos sérios, como razões de estado ou doença, mas simplesmente movido por um egocentrismo mesquinho. Ele pretende continuar como rei com todas as regalias que a posição confere, mas sem as responsabilidades. E é só no terceiro ato, na cena da tempestade, ao lado do bobo da corte, depois de se ter revoltado contra a ingratidão e a maldade que o cercam, se apiedando dos sofrimentos de seu pobre e leal companheiro, é que ele mostra os primeiros sinais de compreensão e compaixão humana e diz, Pobre doido miserável. Ainda existe em meu coração algo que se apieda de ti. E é o bobo que ele faz entrar primeiro na caverna para protegê-lo das intempéries. E deste primeiro gesto segue-se uma emoção de pena pelos sofrimentos da humanidade em geral. Pobres desgraçados, quem quer que sejam, que precisam sofrer a violência desta tormenta. Como podem suas cabeças descobertas e seus estômagos vazios, seus trapos miseráveis, protegê-los dos rigores do inverno? Como é que eu nunca pensei nisto antes? A pomba precisa de uma lição. Precisa sofrer. E que os miserá O que os miseráveis sofrem para saber dar a eles o que lhes é supérfluo e dar aos céus uma prova de justiça? Mas estes primeiros sinais de compaixão e compreensão ainda são seguidos de todo um período de revolta e negação da sua condição humana, que compõe a cena da loucura. E é só no dia seguinte, quando acorda, que atinge um conhecimento maior do que é ser um homem. Do valor do amor e da fraternidade humana. E compreende então a beleza e riqueza que se encontram nas mínimas coisas, quando diz a Cordélia. Não, não, não. Vamos para a prisão, vamos. Lá nós dois cantaremos como pássaros na gaiola. Quando pedires a minha benção eu me () vou voltar para trás Não, não, não. Vamos para a prisão, vamos. Lá nós dois cantaremos como pássaros na gaiola. Quando pedires a minha benção, eu me ajoelharei e te pedirei perdão. E assim viveremos e rezaremos e cantaremos e riremos das borboletas douradas. E contaremos histórias. E ouviremos alguns pobres ladrões contarem novidades da corte. E conversaremos também com eles. E observaremos os mistérios do universo. Como se fossem () se fôssemos espiões de Deus. Aí ele compreendeu que as posses e a pompa são vaidades passageiras. compreendeu a lição de amor dada por Cordélia, aceitou esse amor como parte da harmonia universal, coisa que havia negado desde o início até a cena da loucura. E assim, no fim da vida, aos oitenta anos, Lear finalmente se realiza como ser humano. Depois de Lear, Shakespeare escreveu uma tragédia que não chegou a brilhar e que mais parece uma preparação para algo maior. é Timão de Atenas, de certa forma um contraponto de Lear, pois o que descreve é a revolta do herói contra uma real ingratidão, e não a ingratidão sofrida por Lear, mas provocada por ele próprio. Mas também Timão tem culpa dessa real ingratidão, pois aquilo que ele deu foi dado impensadamente, esbanjadamente, para indivíduos que se ele tivesse um mínimo de senso crítico, teria percebido eram incapazes de gratidão. E é esta falta de visão e de compreensão que o levam a um to a um total desespero e negação de qualquer lado positivo na humanidade e na vida. Quando, no terceiro ato, ele serve aos amigos o banquete fictício de água, ele estoura dizendo, mui sorridentes, delicados e odiosos parasitas, destruidores melíferos, lobos afáveis, ursos mansos, Por causa desta revolta e incapacidade de enxergar o lado positivo dos homens, provando a sua bondade ser coisa superficial e mais fraqueza do que amor ao seu semelhante. Timão, então, entra num () Por causa desta revolta e incapacidade de enxergar o lado positivo dos homens, provando a sua bondade ser coisa superficial e mais fraqueza do que amor ao seu semelhante, Timão entra num negativismo total que o leva à própria destruição () É um estudo da perversão trágica de um homem incapaz de enfrentar a realidade dentro de si e nos outros. E agora, chegamos a Macbeth. A peça em que Shakespeare desenvolve o tema do sofrimento causado pelo erro consciente e que atinge tanto o herói principal quanto os outros. Macbeth, como Othello, é um indivíduo de potencial bom, cuja degringolada para o mal nos faz compreender a nossa própria fragilidade e o quanto todos temos em comum com ele. Ele nos é apresentado nos monólogos não como um símbolo abstrato do mal, cuja destruição intuitivamente nos satisfaria, mas como um nosso irmão na fraternidade dos homens, e cuja queda provoque em nós a sensação de uma perda enorme, perda essa que poderia ter sido evitada. Desde o início da peça, ele entra no conflito interior da escolha consciente do crime. O seu monólogo do primeiro ato, na sétima cena, nos transmite toda a violência dessa luta quando ele fala sobre Duncan. Ele está aqui. confiando duplamente em mim. Primeiro como seu parente e seu vassalo, tendo ambos que repudiar o crime. E segundo como seu anfitrião, que tem por dever trancar as portas para impedir a entrada de um assassino e nunca ser o próprio portador da arma fatal. Além disso, Duncan é tão bom como homem e como rei, que as suas virtudes clamarão como anjos, suando cornetas contra a infâmia de seu assassinato. Nas feiticeiras, Shakespeare nos dá o símbolo psicanalítico do desejo subconsciente transformado em preságio () É o sonho com que se ilude um indivíduo, de que o destino, e não ele próprio, o forçará a tomar uma deter um determinado caminho. Junto a esses desejos inconfessáveis, ele tem também para arrastá-lo ao crime a ambição desmedida da mulher que a todo custo quer vê-lo coroado rei. Mesmo assim, a sua luta de consciência antes do ato parece despedaçá-lo. E é a muito custo que ele o comete. E depois deste cometido, vem o sofrimento para os outros devido a sua implacável tirania. E que é de se esperar num usurpador. Cada manhã, novas viúvas gemem, novos órfãos choram, novas pêmas gritam aos céus, ressoando de tal modo que é como se a Escócia toda se esternasse numa sílaba de dor. E para ele próprio vem o medo, o remorso, a perda total da paz de espírito, a desconfiança de todos que o cercam e a angustiosa mania de perseguição. A própria relação com a mulher, que até o assassinato tinha sido positiva, fica amargurada e negativa. E por tudo isso, lhe é negada a maior benção de que gozam os homens durante a sua trajetória neste vale de lágrimas. Dormir. Ele próprio não tem capacidade de regeneração, porque no fundo é um fraco. E cada passo o leva mais fundo na lama negra do desespero. Nesta peça, Shakespeare deixa de lado qualquer possibilidade de regeneração, fazendo de seu herói apenas um exemplo do abismo de horror a que pode chegar um ser humano inicialmente decente, para que outros tirem desse () disso uma lição. Lição esta que na tragédia é aprendida por Malcolm e por Macduff, expondo o conceito de que o conhecimento verdadeiro de erros alheios também pode servir para o nosso próprio amadurecimento. Por último, temos as duas tragédias romanas, Antônio e Cleópatra e Coriolanus. Em Antônio e Cleópatra, ele usa de vários temas. O da irresponsabilidade de um estadista, o da fraqueza do indivíduo incapaz de resistir à luxúria, e o da possibilidade de, mesmo dentro da luxúria, da entrega mais desenfreada aos prazeres, ser possível nascer uma emoção positiva que volta a fazer do indivíduo um verdadeiro ser humano. chamaram essa peça de paradoxal, porque mostrando que as paixões, os erros levam à destruição, ele também mostra que dentro de certas paixões e de certos erros, há uma grandeza diante da qual o espírito cívico de um Otávio e a impecabilidade moral de uma Otávia tornam-se insignificantes. Mas acredito que o que Shakespeare quis dizer exatamente é que o ser humano, mesmo com falhas gravíssimas, pode atingir () alturas olímpicas, desde que ele vibre, sinta, sofra. Coriolano, então, é um estudo do indivíduo que nega a necessidade e a importância vital da relação humana, vivendo apenas numa redoma abstrata de princípios éticos. O herói é tão orgulhoso de sua posição de aristocrata romano, que no isolamento em que se coloca e no desprezo que sente pelos seus semelhantes, ele acaba traindo o seu próprio país, Roma, e seu berço. a fonte de seu orgulho. A figura de Coriolanus nos é apresentada com os melhores atributos que se possam imaginar num homem da classe privilegiada. Tem tudo para ser não só respeitado como querido e para seguir uma carreira brilhante, mas marcha para a própria destruição pela incapacidade de ser um homem entre outros homens. O que está patente na maneira dele se dirigir ao povo logo no início. Estão abaixo de desprezível. O que é que querem, vira-latas, que desgostam tanto da paz quanto da guerra? Quem confi confia em vocês quando... Deixa eu voltar atrás aqui () Estão abaixo de desprezíveis. O que é que querem, vira-latas, que desgostam tanto da paz quanto da guerra? Quem confiar em vocês, quando procurar leões, encontrará coelhos, patos em vez de raposas. Vocês são tão firmes quanto a chama no gelo e o gelo no sol. E quando a mulher e o amigo pedem a ele que vá ao povo mostrar os seus ferimentos e pedir que o façam um cônsul, de acordo com a tradição romana, ele refuta. antes morrer, antes minguar de fome do que implorar o que mereço. Por que que devo pedir aos joãos-ninguém que lá aparecerem o seu apoio? Dentro desta arrogância Shakespeare nos dá um herói militar, um incorruptível, um homem a quem repugna qualquer vileza. E nos mostra que apesar dessa ética respeitável, ele não cresce. Porque se recusa a reconhecer que como homem é preciso primeiro conhecer-se a si próprio. E depois de atingir esse conhecimento, chegar à integração, não só entre os seus semelhantes, mas com todo o cosmos. Vemos, portanto, que Shakespeare, na sua concepção de ser, do ser humano, atingiu um nível nem sequer vislumbrado pelos dramaturgos gregos. Mas quanto ao teatro contemporâneo, será que ele manteve o nível shakesperiano, superou ou decaiu? Julguem pelo que vem. É óbvio que o teatro de hoje sofre das duas grandes influências que surgiram no século passado, as teorias sociais e os ensinamentos de Freud. E ambos mal dirigidos digeridos, aliás (risos), estudados superficialmente, dão aos dramaturgos os elementos para transformar os seus personagens novamente em fantoches intrinsecamente responsáveis. Porque os crimes cometidos, as falhas, os erros, a causa trágica de acontecimentos na trajetória de um herói, mui() vezes é imputado ou às injustiças sociais, ou aos traumas infantis causados quer por pais, quer por mestres, quer por qualquer outro terceiro () O homem volta a ser o boneco atirado aos ventos, incapaz de crescer e de superar maturamente os acontecimentos. Qual o herói de Brecht, ou de Ionesco, ou de Osborne, de Pinter, de Genet, de Dürrenmatt, que o faz? De vez em quando aparece um, como nas vejeiras de Salem de Miller, mas é a exceção () A grande voga das peças sobre marginais, sobre loucos ou débis mentais é outra amostra desta tendência. Concluo, portanto, que Shakespeare, há quatrocentos anos, deixou uma obra trágica que ainda não encontrou outra que a supere.